top of page

marginalização vira tendencia - o pé como marcador de uma brasilidade

  • Writer: Marcela Alejandra
    Marcela Alejandra
  • Aug 12
  • 8 min read

Desde os primeiros contatos entre povos europeus e nativos brasileiros, mesmo que inconscientemente, o corpo foi um dos, senão o principal canal responsável por definir e manifestar arquétipos culturais e sociais, sejam eles - em maioria - pejorativos ou qualitativos no que dizem respeito ao conceito de uma brasilidade.

No contexto Brasil quinhentista, a nudez dos corpos indígenas nativos não chocavam apenas os membros do clero, mas em um todo, era digerida como algo diretamente ligado à ausência de civilidade, ao pecado e à tentação sexual. Em O Trópico dos Pecados, Ronaldo Vainfas pontua como o corpo em sua naturalidade era visto por colonos como algo vexatório e demoníaco, necessitando urgentemente ser coberto, principalmente após “iniciação” no catolicismo: “Mas inquietava-os, em grande medida, o que consideravam falta de lei, ausência de interdições quanto a exibição do corpo e as relações sexuais. Leigos ou religiosos, todos sem exceção ressaltam a nudez dos índios […]” (VAINFAS, 1989, p. 6). Aprofundando ainda mais as palavras do autor:

O horror que manifestavam os jesuítas face à nudez dos índios, especialmente a das partes genitais, parece mesmo antecipar todo o rigor de uma época - tempo de Reformas -, obcecada pela ocultação dos corpos: na Europa, ainda no século XVI, começariam as interdições aos que eventualmente exibissem seu corpo em banhos públicos, termas, rios ou em qualquer lugar e ocasião. Inaugurar-se-ia lembra-nos Jean-Claude Bologne, a moderna era do pudor, e no século XVIII algumas congregações chegariam até, por aversão a nudez, a proibir os religiosos de se banharem, salvo por estritas razões de ordem médica. (VAINFAS, 1989, p. 7)

Mara Rúbia Sant’Anna reforça tal temática e traz como no universo colonial, elementos da indumentária e da aparência definiam implícita ou explicitamente posições sociais e simbolizavam pertencimento a classes mais elevadas (SANT’ANNA, 2011). Nessa perspectiva, a ausência de indumentária ou de qualquer vestuário no geral também simbolizava diretamente a ausência de uma civilidade e sociabilidade.


Enquanto se tem tal temática em mente, observa-se pinturas de Albert Eckhout estudadas por Carla Oliveira e nota-se como um pequeno elemento ao canto inferior da tela, a princípio sem nenhuma importância, carrega tamanho significado: os pés. Durante o processo de colonização, “O mulato aparece quase que vestido como um europeu, mas traz os pés descalços e as pernas desprotegidas, sinal de uma posição subalterna na Colônia” (OLIVEIRA, 2007, p. 12). No retrato, vemos que, mesmo sendo mestiça e já estando inserida na sociedade colonial, como indicado pelo fato de estar trajada e ornada, não deixa de chamar atenção a presença dos pés descalços.


“Mulher Mameluca”, de Albert Eckhout. Óleo sobre tela, 1641. Acervo do Museu Nacional da Dinamarca.
“Mulher Mameluca”, de Albert Eckhout. Óleo sobre tela, 1641. Acervo do Museu Nacional da Dinamarca.

Nessa dinâmica de primeiras impressões, O pé descalço e em contato direto e íntimo com a natureza, antes símbolo de respeito e conexão com algo maior que o humano, transforma‑se em sinônimo de inferioridade e submissão social quando visto por olhos euro e antropocêntricos. Logo, fixa-se a ideia de que o brasileiro poderia ser o mais “domesticado” o possível, mas ainda assim continuaria submisso ao europeu, esse, vindo de uma cultura em que calçados eram claros niveladores de poder. O descalço era, assim, também um marcador visual da marginalização.

Mais a fundo, Carla Mary Oliveira discute como as primeiras impressões e retratações em relação aos nativos brasileiros tidas pelos anteriormente citados pintores Eckhout e Post feitas durante o processo de colonização do Brasil e que foram responsáveis por vender a imagem do país ao exterior não documentavam fielmente a realidade, mas inventavam um Brasil visualmente exótico, abundante, fértil e com mão de obra submissa: “[…]pretendia mostrar aos investidores conterrâneos a viabilidade de um empreendimento tão arriscado e, também, segundo o espírito da época, trazer a civilização àquelas terras ainda praticamente incógnitas.”(OLIVEIRA, 2007, p. 3). A frente, a autora continua a mesma linha de raciocínio: “[..]Representam não um tema objetivo, mas sim uma interpretação subjetiva de um mundo exótico que, na verdade, o artista não deseja decifrar. Post não queria registrar o Brasil: seu traço interpreta o trópico através de um vocabulário pictórico pré-definido.”(OLIVEIRA, 2007, p. 20)


Tal “brasilidade” não desaparece com o tempo e deixa rastros tão intocados que se tornam imperceptíveis, mesmo séculos depois: o calçar, ou a ausência de, sobreviveu no imaginário brasileiro como uma herança simbólica diretamente ligada à tais períodos em que a colonização ainda se aflorava.

Até as primeiras décadas do século XXI, mesmo em um Brasil urbano e moderno, o uso de chinelo de dedo (ou em níveis mais sutis a simples imagem do pé seminu) na grande maioria dos contextos ainda era associada ao desleixo, à informalidade e às classes marginalizadas, também ligando-se ao fato de se tratar do calçado mais financeiramente acessível do mercado. Não à toa, nas campanhas iniciais da marca Havaianas durante os anos 1970, a resistência em assumir o chinelo como calçado para além do uso “íntimo”/ doméstico ou em ambientes como praias e piscinas era evidente.


Em Por uma biografia das coisas: a vida social da marca Havaianas e a invenção da brasilidade, Magda dos Santos Ribeiro registra, em entrevistas de campo realizadas em 2009 com ex‑funcionários do setor de marketing da São Paulo Alpargatas, então detentora da Havaianas: “as pessoas não queriam sair de casa de chinelos, elas temiam serem confundidas com pessoas muito pobres, que não tinham condições de comprar um calçado melhor […]. Nosso desafio era tirar a vergonha de usar Havaianas em público” (RIBEIRO, 2013, p. 350).

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Rui Porto, diretor de comunicação da empresa cita em entrevista à BBC Brasil: “No passado, ter Havaianas era quase como exibir um atestado de pobreza. Mas conseguimos transformar as sandálias no calçado mais democrático do Brasil, usado tanto pela faxineira que limpa a piscina quanto pela grã‑fina que toma sol na mesma piscina” (BBC BRASIL, 2003).

Curiosamente, é a partir dessa marcação corporal marginalizada e histórica que o mercado e a publicidade subalternizam o signo de uma brasilidade durante a evolução da identidade da marca Havaianas durante a transição do século XX, ressignificando um dos traços mais reconhecíveis dessa estética e conceito. A princípio associada às classes excluídas, a marca buscou reverter esse estigma principalmente por meio da publicidade ao investir em uma narrativa humorística, hedonista e informal como algo positivo, além de utilizar a imagem de celebridades que se encaixavam na mesma personalidade exótica, brasílica e bem humorada da marca. Os temas das publicidades eram os clássicos brasileiros: carnaval, praia e futebol acompanhados do slogan “A legítima brasileira”.


ree

Com os avanços tecnológicos da virada do século XX para o XXI, a impressão expandida para diversos tipos de materiais além do papel deu liberdade criativa para que a marca desenvolvesse padrões, estampas e até coleções próprias, se aproximando ainda mais de um artigo de moda. No mesmo período, anos 2000, a Havaianas inicia sua expansão internacional sustentada por um plano de ação e posicionamento um tanto quanto astuto: No continente europeu, a marca dá atenção principal à França e Itália, essas, historicamente, capitais da moda.


ree

Fisgando as vítimas da moda europeias que, como séculos atrás, ainda mostravam-se dispostas a consumir o exotismo pitoresco tropical das Américas, o chinelo passa a ser observado por uma outra perspectiva: desleixo torna-se mera descontração. Saindo das margens e se posicionando no centro do eixo, o chinelo, em específico a Havaianas, se metamorfoseia em um produto high end e em um exemplo claro da teoria de difusão ascendente. Transformado em objeto de desejo de consumo e uma expressão legítima de um “modo de ser” brasileiro, o chinelo sai do espaço íntimo em rumo ao mercado, inclusive o de luxo, como em desfiles de matriarcas do universo da moda conceitual, como Prada, Dolce & Gabbana e Hermés, além de ser uma peça statement muito observada durante as principais semanas de moda do norte global. (RIBEIRO, 2013, p. 350)

Mesmo que a inserção bem sucedida da Havaianas no mercado internacional tenha transformado os pés semidesnudos em um item cool que agora performa casualidade e descontração, não deixa-se de notar um pensamento um tanto quanto ambíguo: Seria essa disrupção movida pelo mercado o reforço de um arquétipo subalterno e estigmatizado ou um movimento antropofágico onde agora o brasileiro passa a se apossar e integrar suas sombras, sejam elas históricas, sociais e/ou culturais, como parte de uma identidade completa?


A trajetória simbólica do corpo, e agora em específico dos pés, mesmo estando ele nu/seminu, fala não só de meras mudanças de preferência estética, reflete raízes históricas: do escândalo da nudez pecaminosa à informalidade descontraída, o Brasil continua a ser inventado, vendido e muito consumido como exótico. A aceitação internacional das Havaianas deixa claro essa lógica, reafirmando uma brasilidade tropicalizada e exotizada que remete, em última instância, às mesmas imagens, impressões e dinâmicas já registradas séculos antes no inconsciente coletivo: marginalização, capital como estrutura das intenções, dominação vs. submissão, corpo, desejo e censura.

Paradoxalmente, tal sucesso e aceitação da marca pelo universo estrangeiro também não só se resume à uma simples caricatura em relação à cultura brasileira. Ao se apossar de símbolos já solidamente enraizados, mesmo que degradantes, a marca em certa perspectiva, reforça, agora de forma invertida e mesmo que em símbolos caricatos e exóticos, os traços de uma identidade cultural autêntica e novamente antropofágica como nos tempos modernistas. Se utiliza de aspectos de sua própria história e cultura para criar o próprio universo, como levantado por Magda Ribeiro:

O sucesso deste objeto no Brasil e no exterior é a comprovação da eficácia da noção de cultura na qual a marca se insere. Assim, não se trata de uma versão falsa, caricatural ou fantasiosa sobre a cultura brasileira; trata-se, antes, de uma invenção eficaz dessa cultura, como são, aliás, todas as invenções. O que a marca Havaianas fez foi expandir metaforicamente os elementos retirados de sua experiência com aquilo que identificou como cultura brasileira, ou seja, ao experimentar e vivenciar dada cultura ela é produzida e expandida, comunicada nos termos passíveis de compreensão por seu universo. [...] Logo, a marca Havaianas, uma aspirante a nativa brasileira, só conseguiria ingressar num mundo criado por ela mesma [...] A efetivação da marca Havaianas como ícone dotado de brasilidade é delineada por meio de uma concretização inventiva dessa entidade como tal. O mundo da marca Havaianas é, com efeito, o mundo da cultura brasileira, um mundo inventado por ela, para que nele possa existir.(RIBEIRO, 2013, p. 77).

O corpo, mesmo que ausente de qualquer tipo de indumentária, continua fielmente, em camadas mais profundas, a comunicar e expressar uma identidade, seja de um indivíduo, grupo ou sociedade. “Ainda que para sempre faltem as pessoas vestidas, em movimento, há vestígios, resíduos, um tipo de memória do vínculo que um dia se estabeleceu entre aqueles corpos e as roupas que os vestiram.” (CASARIN, 2022, p.18).



REFERÊNCIAS, pois nem tudo são vozes da cabeça


OLIVEIRA, Carla Mary. O Brasil seiscentista nas pinturas de Albert Eckhout e Frans Janszoon Post: documento ou invenção do Novo Mundo? João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, [s.d.]


SANT’ANNA, Mara Rúbia. Sociabilidades coloniais: entre o ver e ser visto. Cap. 3, p. 57‑85. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017. (Coleção O Brasil por suas aparências).


VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.


CASARIN, Carolina. Guarda-Roupa Modernista: moda e modernismo no Brasil (1922-1930). São Paulo: Ateliê Editorial, 2021.


RIBEIRO, Magda dos Santos. Por uma biografia das coisas: a vida social da marca Havaianas e a invenção da brasilidade. Etnográfica, Lisboa, v. 17, n. 2, p. 341–367, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.4000/etnografica.3148. Acesso em: 13 jun. 2025.


BBC BRASIL. Havaianas são vendidas por quase R$500 em Londres. São Paulo, 14 jun. 2003. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/cultura/story/2003/06/printable/030614_0havaianasss.Acesso em: 11 jul. 2025.



 
 
 

Comments


bottom of page